13/02/2023
Estadão
As agências reguladoras estão sofrendo múltiplos ataques. Já no primeiro dia do novo governo Lula, a Medida Provisória (MP) 1.154 desmembrou a Agência Nacional de Águas (ANA) e transferiu sua função de regular o saneamento básico ao Ministério das Cidades. A manobra é eivada de ilegalidades, a começar pelo fato de que a competência da ANA foi instituída pelo Marco do Saneamento e só pode ser alterada por lei.
Mas o balão de ensaio aguçou apetites. Uma emenda “jabuti” (n. 54) à MP propõe retirar das 11 agências a autonomia para regular e editar atos normativos, restringindo-as à fiscalização de contratos. As regras passariam a ser determinadas por “conselhos” subordinados aos ministérios, em tese formados por membros do governo, do setor regulado e dos consumidores. Na prática, a escolha e a manutenção dos conselheiros estariam ao arbítrio do governo e seus aliados políticos, esvaziando a razão de ser das agências: regular o setor através de uma gestão isenta pautada por critérios técnicos.
As agências foram criadas na década de 90, quando a gestão FHC promoveu a transição do Estado empresário para o Estado regulador. A ideia de fundo é que serviços públicos não precisam ser prestados por empresas estatais, mas podem sê-lo por empresas privadas, desde que atendam ao interesse público. E, de fato, a experiência mostra que eles tendem a ser mais bem prestados pela iniciativa privada, que, em geral, conta com mais capacidade técnica e financeira.
Para garantir o interesse público, era fundamental que os serviços prestados pelas concessionárias seguissem regras determinadas por autarquias técnicas e equidistantes do poder concedente, das empresas reguladas e dos consumidores. A autonomia funcional, decisória, administrativa e financeira é crucial para evitar a distorção das regras por grupos de pressão – especialmente das duas partes fortes da tríade, os enclaves político-partidários e os grandes grupos econômicos – e garantir a estabilidade e a transparência que fomentam a competitividade e atraem investimentos.
Nesse arranjo, o Legislativo é responsável pelas leis do setor; o Executivo, pelo planejamento setorial e pela implementação de políticas públicas; e as agências, por decidir assuntos de natureza técnica, dentre os quais a regulação econômica e a resolução de conflitos a ela associados. Os diretores, indicados pelo Executivo e aprovados pelo Legislativo, têm de comprovar qualificação técnica; respeitar quarentenas em relação à atuação política e empresarial; têm mandato fixo e autonomia decisória; e são obrigados a prestar contas ao Legislativo.
O PT sempre foi hostil às agências. Nas gestões lulopetistas elas foram enxovalhadas por tentativas de ingerência política, loteamento partidário, asfixia orçamentária e vacâncias prolongadas das diretorias, a tal ponto que o Congresso estabeleceu em 2019 uma lei para blindá-las desse desvirtuamento.
Mesmo assim, com seus aliados do Centrão, Jair Bolsonaro tentou de todas as formas restringir a independência das agências. Quando não conseguia, caracteristicamente apelava ao constrangimento pessoal de seus diretores. Deus sabe quando os brasileiros teriam acesso às vacinas para a covid se a visão do PT tivesse prevalecido e Bolsonaro pudesse exercer todo seu arbítrio sobre a Anvisa.
As agências, em resumo, representam uma barreira institucional ao partidarismo, ao patrimonialismo e ao corporativismo. É exatamente isso que irrita tanto as falanges políticas fisiológicas e clientelistas quanto as ideológicas e autoritárias. Não surpreende que o Centrão, o lulopetismo e o bolsonarismo cerrem fileiras no intuito de esvaziá-las. Tal como com outros marcos projetados para garantir que políticas de Estado não estarão submetidas aos apetites imediatistas e paroquiais dos governantes de turno e de grupos econômicos a eles associados – como a Lei das Estatais, a Lei de Responsabilidade Fiscal ou a independência do Banco Central –, a batalha contra as agências é só uma das frentes da grande guerra pela perpetuação do capitalismo de compadrio.